Um dos temas mais controversos do mundo fitness para otimizar perda de gordura trata-se do exercício aeróbico em jejum. Seja para estética quanto para melhorar dos parâmetros de saúde, há os que defendem e os que condenam a prática.
Como já tratei aqui no blog (clique aqui), o que vai definir o substrato preferencial utilizado durante o exercício é sua intensidade. Mas será que um estado onde houvesse menos glicogênio muscular e hepático disponível, poderia otimizar a utilização de gordura como fonte de energia?
Primeiramente, gostaria de deixar alguns conceitos destacados para reutilizá-los depois. Vou procurar explicar de maneira clara para os leitores que não são da área:
- Para o organismo utilizar gordura como fonte de energia, especificamente no Ciclo de Krebs, há a necessidade de um composto, chamado oxalacetato. Ele é sintetizado principalmente a partir de glicose. Ou seja, para ativar o ciclo de Krebs (e a "queima" de gordura), há a necessidade de glicose.
- Em situações de jejum e baixa disponibilidade de glicose (seja em forma de glicogênio hepático ou muscular), o organismo sintetiza glicose a partir de glicerol, lactato e aminoácidos (por isso há o medo de perda de massa muscular com essa conduta, visto que pode-se degradar proteína muscular em aminoácidos e convertê-los em glicose). Esse processo chama-se gliconeogênese.
- O estado nutricional também é um fator importante para a oxidação de substratos. A ingestão de carboidratos, por exemplo, inibe a oxidação de gorduras. Alta de insulina inibe a lipólise e reduz a concentração sanguínea de ácidos graxos (Van Loon e colaboradores, 2001). Esse efeito inibitório pode durar pelo menos 6 horas (De Bock e colaboradores, 2005; Achten & Jeukendrup, 2004).
- Segundo Poian & Carvalho (2002), a glicose na corrente sanguínea (glicemia) é mantida às custas dos estoques de glicogênio hepático, reduzindo seus níveis após as 12 primeiras horas de jejum.
A maioria dos protocolos de exercício aeróbico em jejum são em intensidades baixas/moderadas ou baixíssimas, com o intuito de utilizar predominantemente gordura como fonte de energia. Em intensidades baixíssimas, o gasto calórico seria muito baixo. Por exemplo, a 25% da capacidade máxima oxidativa (VO2máx), quase que a totalidade da energia provém dos ácidos graxos, enquanto a 65%, esse percentual baixa para 50%. Entretanto, a quantidade total de gordura oxidada é maior a 65% VO2máx., visto que acresce 50% o total de energia gasta (Ballor e colaboradores, 1990).
Por isso, a maioria dos estudos focam numa intensidade entre 50%-75% VO2máx. Por exemplo, De Bock e colaboradores (2005) demonstraram que o exercício em cicloergômetro após um jejum noturno de 11 horas, aumentou a degradação de triacilglicerol intramuscular (depósito de gordura muscular) entre 50% e 75% VO2máx. Porém, devido à grande utilização de ácidos graxos como fonte de energia, há aumento significativo na produção de corpos cetônicos, causando acidose sanguínea e queda no rendimento (Champe e colaboradores, 1996).
Dohm e colaboradores (1986) compararam o exercício a 70% VO2máx após 23 horas de jejum afim de estudar o comportamento da glicemia sanguínea. Não houve diferença significativa nos níveis de glicose durante o exercício entre o grupo em jejum e o grupo alimentado (devido à gliconeogênese). A mobilização e utilização de gordura como fonte de energia foi maior nos indivíduos em jejum.
Analisando o gasto calórico pós-exercício (item importante no processo de emagrecimento), Paoli e colaboradores (2011) demonstraram que, a 65% VO2máx durante 35 minutos, o grupo em jejum oxidou menos gordura nas 24 horas subsequentes ao exercício com relação ao grupo alimentado. Em intensidades mais altas, como no protcolo HIIT, Gillen e colaboradores (2013) verificaram que o jejum não altera o padrão de oxidação de gordura, como era de se esperar (a intensidade define o substrato a ser utilizado).
Há um estudo muito famoso sobre o tema, realizado com judocas de elite sob influência do jejum no Ramadã. Prefiro não me focar nesse estudo porque o grupo estudado é exceção, não regra. Ou seja, são atletas (logo, sua oxidação de gordura é mais eficiente) e devem possuir algum tipo de adaptação do organismo ao jejum prolongado (realizam o jejum prolongado uma vez por ano). Esses dois fatores juntos faz da amostra um grupo distinto da grande maioria.
E, se por um lado, o jejum provoca aumento na liberação de hormônios lipolíticos (adrenalina, cortisol e hormônio do crescimento) (Jensen & Landau, 2001); vale ressaltar o estudo de Uttler e colaboradores (1999), onde 12 horas de jejum (e exercício a 75% VO2máx. por 2 horas e meia) provocou aumentos no cortisol (hormônio catabólico) duas vezes mais que o grupo que ingeriu carboidratos antes do protocolo. E o cortisol ainda se manteve 80% elevado 90 minutos após o fim da atividade. Embora tenha provocado menores níveis de insulina durante o exercício (e maior oxidação de gordura),
Importante lembrar que em estado de repouso, o organismo consegue lidar com o estado de jejum. Com o aumento da demanda metabólica, o organismo pode se proteger induzindo o indivíduo a desmaios, além da possibilidade de ocorrer danos neurais (Auer e colaboradores, 1993). Além disso, a performance pode sofrer decréscimo e a tendência a fadiga aumentar (Maughan, 2010).
O que observamos em diversos autores são os extremos, aqueles que defendem o aeróbico em jejum, mas sempre com ressalvas e os que condenam. Como opinião própria, não o condeno totalmente, mas deve ser prescrito com muitíssima cautela.
- nem todas as pessoas conseguem realizar atividade física em jejum, ficam com dor de cabeça, mal humor, sem paciência e podem até desmaiar. Outras conseguem realizar;
- os estudos focam ou numa intensidade muito baixa, como 25 a 30% VO2máx, ou após o primeiro limiar (aeróbico), em torno de 65-70% VO2máx. No estudo de Bock e colaboradores (2005), por exemplo, a 50% VO2máx., a oxidação de ácidos graxos foi maior no grupo em jejum. Então, a intensidade não pode ser moderada-alta, mas também não pode ser quase tão baixa quanto em repouso.
- os autores utilizam um jejum por demasia prolongado, um pouco fora da realidade da maioria das pessoas. Uma pessoa que dorme 6, 8 horas, não vai fazer seu exercício em jejum de manhã com um jejum de 11 ou 24 horas. Lembram do que citei logo no início do texto? A ação inibitória da insulina sobre a oxidação de gorduras dura em torno de 6 horas e o fígado consegue manter a glicose estável através de seus estoques de glicogênio por volta de 12 horas de jejum. Então, um trabalho em conjunto deve ser elaborado entre o educador físico e nutricionista/nutrólogo nessa ocasião.
- algumas pessoas advogam a ingestão de BCAAs (ou somente leucina) para evitar o catabolismo muscular, além de algum outro suplemento. Mas daí não estamos falando de aeróbico em jejum, mas aeróbico com baixo carboidrato (low carb).
- Muitíssimo importante é o manejo nutricional após o exercício. Verificamos que o cortisol aumenta bastante durante e continua aumentado após o exercício em jejum. Há manejos nutricionais para lidar com essa situação. Lembre de se manter sempre hidratado, beba muita água.
- Tão importante quanto a intensidade, é o tempo do exercício. Não pode ser uma atividade muito longa, nem pode ser realizada por semanas, afim de evitar degradação proteica em demasia.
Dados alguns cuidados, principalmente num trabalho conjunto entre o educador físico e quem monitora a dieta do cliente, o aeróbico em jejum não precisa ser totalmente descartado. Pode ser uma via interessante em momentos onde a perda de gordura se estabilizou, como uma conduta "de choque". Mas, repito, não é o metabolismo de todos que se adaptam. Deve ser prescrito e acompanhado por profissionais (você pode se prejudicar seriamente saindo por aí se auto-prescrevendo), verificando periodicamente a composição corporal.
Referências
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